Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Aproximações entre Carmen da Silva e Nélida Piñon

ANPOLL junho 2012 – Niterói
Encontro GT – Relações Literárias Interamericanas
DEBATE: Arnaldo Vianna Rosa sobre texto de Nubia Hanciau

A professora Nubia Hanciau nos apresenta a escritora Carmen da Silva, um dos mais importantes ícones do feminismo brasileiro nas décadas de 1970/80, registrando suas histórias e seus exílios por “dever da memória” em relação aos que enriqueceram a sociedade com sua luta, solidariedade e compaixão. Se Nubia considera seu texto sobre Carmen da Silva um “dever da memória”, eu, seu leitor, destaco, neste Encontro da ANPOLL, como “dever da memória acadêmica”, registrar, na trajetória profissional de Nubia Hanciau: a excelência de suas pesquisas, a partilha solidária de funções por ela exercidas, o compartilhamento de saberes e a valorização das pesquisas de seus pares, características que identificam o percurso acadêmico do verdadeiro intelectual.

Feito o registro, tenho a dizer que foi um prazer, lendo Nubia, poder dialogar com ela a respeito da manifestação suplementar da diferença em autoras que praticam, em suas obras, a transgressão das fronteiras de gênero como forma de intervenção cultural e prática de subversão da autoridade discursiva. Tarefa difícil a de recuperar do apagamento a memória recalcada pelo logos institucional que se encontra dispersa em passados intertextuais. São, entretanto, esses passados que as autoras eleitas por nós inscrevem em suas narrativas com a diferença do discurso transgressor feminino.

Nubia, com Carmen da Silva, que se integra ao projeto de descrever a condição das mulheres obscuras, distanciadas das peripécias do exercício do poder, apresentando-se em Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984), como:

Nem Joana D’Arc, nem Anita Garibaldi, mas uma mulher como as outras, sem pena nem glória, mas viva e relativamente inteira. 

Eu, com Nélida Piñon, que diz em O gesto da criação:

Tenho gosto em servir à literatura com memória e corpo de mulher. Em mim residem os recursos sigilosos que a mulher engendrou ao longo da história.

Se Carmen da Silva diz que seus artigos “caíram como UFOs incandescentes no marasmo em que dormitava a mulher brasileira”, acrescentando que começou “a receber uma avalanche de cartas de todos os tons: desesperados apelos, xingamentos, pedidos de clemência: deixe-nos em paz, preferimos não saber!” -, Nélida Piñon escreve em O presumível coração da América:

O mundo da imaginação autoriza-me a cometer desatinos, a invalidar histórias herdadas. A emendá-las, a meu critério, umas às outras.

Nubia destaca a condição “exilar” de Carmen da Silva em seu trânsito pelo Uruguai, Argentina e Brasil, e a difícil escolha da nacionalidade. Ela considera não só o exílio exterior, a ruptura com o território de origem e as dificuldades de integração a uma civilização diferente, encarnada na figura do estrangeiro, mas também o exílio interno, sentimento de aprisionamento em sua própria pátria.

Em Histórias híbridas, quando Carmen da Silva expõe sua decisão de emigrar para o Uruguai e, mais tarde, para a Argentina, onde inicia a carreira de escritora e jornalista, ela realiza o exercício do “híbrido” do título da autobiografia, recolhendo fragmentos culturais que se incorporam ao mosaico de mestiçagem, do sincretismo que caracteriza a América Latina. É a pátria imaginária do exilado, utópica e mítica, fundada na realidade narrativa. E é essa pátria fundada na narrativa, na construção narrativa de um ethos linguístico e cultural híbrido, que o exilado busca para “rechaçar o exílio” e “lutar para evitar seus estragos”, como diz SAÏD. E isso se produz em uma narratividade onde se inscrevem os “marcos históricos e geográficos, os inimigos e heróis oficiais”.

Assim é que Carmen da Silva testemunha o fato histórico do golpe militar ocorrido na capital portenha que destituiu o general Juan Domingo Perón do poder, em setembro de 1955. A memória foi registrada em Septiembre, seu primeiro livro, publicado em 1957 e traduzido para o português com o título Fuga em setembro. De volta ao Brasil em 1963, Carmen da Silva registra, também, em seu arquivo de memórias, o golpe militar de 1964 e o período ditatorial pós-1964, enquanto Nélida Piñon pergunta em O gesto da criação: “E o que é a memória senão a migalha, a pegada? O homem vai espalhando memórias pelas veredas como se fossem migalhas”.

Ambas sentem as adversidades do repatriamento. Carmen da Silva diz que voltou um pouco estrangeira, perdida, desorientada até com o próprio idioma:

Buenos días mi patria de domingo vestida, eterna festa, pátria que eu ainda não reconquistei de todo, quinze anos longe de ti, como é que pude, e este mar, e estas montanhas e esta gente.

Nélida Piñon assume sua condição de “brasileira recente”, revelando sua condição de exilada dividida entre duas narrativas, a do Brasil e a da Espanha, entre o dever de narrar a pátria “nova” e real e a nostalgia da pátria imaginária perdida na memória atávica:

Nutri sempre profunda nostalgia por uma Galícia que conheci menina, mal sabendo que existia a geografia dos homens e que cada terra - dentro dessa estranha noção de pátria - levava um nome. Um nome no mapa, um nome na alma.

Apraz-me porém confessar que sou filha desta América mestiça, de fusão lusa e ibérica, de genealogia desgovernada e rica. Filha também desta nação cujo repertório civilizatório, proveniente de suas diversas línguas e de suas regiões autônomas, concilia-se com as raízes inaugurais do continente latino-americano.

Esse entre-lugar movente, de cartografias sobrepostas, marcado pela (des)territorialização de imaginários e fronteiras culturais, constitui o universo narrativo das duas escritoras que, no trânsito entre geografias diversas, interrogam a noção de pátria. É na desconstrução dessa noção de pátria como fronteira geográfica e sua reinvenção nas cartografias narrativas dos imaginários complexos em constante mutação e movência que se elaboram os textos de Carmen da Silva e Nélida Piñon.

Construindo-se, pois, no livro como pátria, pátria utópica da narrativa, as memórias das duas escritoras navegam em rotas inversas nas caravelas de sua imaginação: “Sob o desconforto da paixão de inventar, o escritor traslada tempos, espaços, tribos inteiras para a pátria de sua imaginação”, diz Nélida Piñon. Nas rotas dessas viagens, o escritor recolhe fragmentos de memórias herdadas de outras viagens identificando na sobreposição do palimpsesto narrativo uma polifonia textual onde se identificam esses traços. Das narrativas do exílio, ouvidas no relato dos imigrantes e do avô galego e lidas no referencial bibliográfico hispânico, Nélida elaborou uma memória narrativa referenciada na alteridade cultural ibérica em suas migrações narrativas para as Américas:

Trago, pois, na imaginação vestígios de uma viagem que não fiz - com meu corpo - e o gosto do sal inerente à travessia atlântica.

Esse é também o espaço de trânsito de Carmen da Silva, que, tanto na Argentina, como no Brasil, registra, como diz Nubia, no “turbilhão do entre-lugar literário”, que a “identidade nunca é definitivamente adquirida, mas confunde-se na trama dos gestos do passado”. Recuperam, ambas, assim, alteridades latino-americanas pouco presentes na composição narrativa do mosaico cultural nacional. Nesse sentido, tomo como citação emblemática do texto de Nélida Piñon a noção de pátria como invenção utópica, desterritorializada, movente, mutante e múltipla em seu romance Fundador:

Quem sabe ainda percorrerei terras sem nome e marca, que se poderiam chamar américas, libertas, severas, enfim a multiplicidade das alcunhas.

Comprometendo-se com uma leitura das estruturas profundas da exclusão feminina, mas não elegendo o corpo e o desejo como instâncias particulares do feminino, Carmen da Silva e Nélida Piñon resgatam a mulher das rasuras de uma história de lacunas. Ambas ressignificam o foco narrativo da mulher na história, resgatando os valores do olhar feminino, quando sua voz silenciava oprimida pelo logos patriarcal. Ambas recuperam a voz feminina, quando tecem suas narrativas com os fios da memória de silêncios da mulher, incluindo, em uma discursividade múltipla, vozes que não podiam dizer uma memória que afinal explode não se contendo mais em seus densos labirintos, ou nas brechas da história. Findo o meu diálogo intertextual com Nubia em companhia de Nélida Piñon, com a intenção de partilhar com ela o diálogo intelectual sobre a mesma linha de pesquisa. Assim diz Nélida Piñon:

Talvez me queiras submissa a histórias cujo sentido do real se concilie com fatias de uma realidade oficial, de modo que me seja fácil segui-las. Mas de que me serviriam estas vidas sólidas, com telhado e vigas mestras, que se deixam ligeiramente retocar e jamais se transfiguram. Encarregadas da obediência e da colheita, elas proíbem qualquer transgressão. [...] Não pretendo cingir-me aos parceiros brandos, de calendário ocupado com festas previstas desde o nascimento até o cortejo da morte. (FD, p. 17). Afinal, não sou testemunha de fé, e não tenho firma no cartório da Erasmo Braga. [...] Minha narrativa é porosa, deve mesmo receber cunhas de madeira em sua matriz, mas nada tão forte que lhe arrisque a autonomia. (FD, p. 31)