Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Depoimento de Moema Toscano

Concedido à acadêmica Fernanda C. dos S. Rodrigues, em 23 de junho de 20081.

A amizade de Moema com Carmen teve início em 1975. Eram vizinhas, em Copacabana,Moema morava na rua Raimundo Correia e Carmen na Dias da Rocha. Ambas integravam o Centro da Mulher Brasileira, que acabava de ser criado e cujas reuniões se realizavam aos sábados. Com as caronas que Moema oferecia a Carmen (que não dirigia) iniciaram uma amizade que duraria até a morte de Carmen, em 1985. Segundo as declarações de Moema, esta amizade lhe rendeu ótimas lembranças e muito a enriqueceu do ponto de vista afetivo.

A convivência no Centro da Mulher Brasileira não foi o único ponto em comum entre Carmem e Moema. A origem gaúcha, a paixão pelos gatos, o gosto por um bom vinho, o estilo de vida – ambas eram solteiras, sem filhos –, e principalmente o interesse comum pela temática feminista, conduziam a discussões animadas e intermináveis. Para completar, ambas eram do mesmo signo de Capricórnio, daí tanta afinidade...

Há aproximadamente 10 anos, quando Carmem completaria 80 se estivesse viva, realizou-se na Associação Brasileira de Imprensa uma homenagem que contou com a colaboração do jornalista José Carlos Monteiro e mais um grupo de colegas e amigas.  Na ocasião Moema fez um relato de sua convivência com Carmem e descreveu alguns traços mais marcantes de sua personalidade:

- Carmem era defensora radical dos direitos da mulher, de sua independência e de sua profissionalização.

- Podemos dizer que ela influenciou fortemente pelo menos duas gerações de mulheres: o grupo constituído pelas companheiras de sua própria geração, tocadas pelo seu forte carisma e pela sua coragem de enfrentar os preconceitos vigentes à sua época, e o grupo formado pelas mulheres mais jovens, que tinha na revista Claudia o primeiro contato com as propostas feministas que começavam a ganhar espaço na sociedade. Os conselhos que Carmen dava a suas leitoras tinham sempre como foco a questão de sua emancipação e da luta contra a tutela masculina.

- A escritora tinha tendência para assumir posições radicais e se comprazia em desacatar o grupo mais conservador, usando linguagem considerada imprópria para mulheres socialmente bem situadas, seu caso, apelando para palavrões e tomando atitudes pouco convencionais, como sentar no chão, durante as reuniões, por exemplo.

- Ao invés de “queimar o sutiã”, que era o slogan feminista muito na moda, Carmen simplesmente o aboliu, preferindo enfrentar o grupo com os grandes seios caídos, usando roupas amplas, bem à vontade.  Era como se, na época dos espartilhos, a moça preferisse ostentar sua cintura  larga, sem nenhum constrangimento.

- Por suas posições radicais, ela pode ser considerada uma mulher de esquerda, embora não fosse vinculada a nenhum partido político, em particular.

- Em caso de qualquer conflito entre homens e mulheres, Carmem assumia sempre a defesa destas últimas, muito embora num segundo momento pudesse até adotar uma postura mais crítica.

- O salário pago pela revista proporcionava à jornalista um alto padrão de vida. Tal trabalho a agradava e lhe dava grande prestígio social.

- Não possuía graduação universitária, embora não raramente fosse apresentada como psicóloga, em encontros, congressos, entrevistas, etc. Carmem não confirmava nem desmentia tal titulação. Naqueles tempos, a posse de um diploma de nível superior proporcionava grande autoridade, era como se a pessoa se legitimasse mais por seu título do que por seu saber (informação que Moema obteve com a irmã de Carmen, Maria Pia).

- Carmem enfrentou com muita coragem a sociedade, seu tempo e a família, ao estabelecer uma relação permanente com Cláudio, advogado, negro, de origem social inferior. No início, a relação marchou bem. Carmem proporcionava ao companheiro um padrão de vida alto, inclusive com viagem à Europa e relações de amizade com pessoas de ótimo nível intelectual e social. Quando Carmem mudou-se para Niterói, Cláudio assumiu de vez a condição de parasita da companheira: passava os dias nos bares ou na praia, enquanto ela cumpria o duro ofício de jornalista, quase em tempo integral. Carmen logo se cansou dessa relação que se deteriorava a olhos vistos e decidiu abandonar o companheiro, voltando para o Rio. Como resposta, Cláudio resolveu agredi-la tirando-lhe o bem mais precioso: seus gatos, quatro ou cinco não lembro bem... Estes foram sequestrados e levados para lugar desconhecido.  Carmem ficou arrasada, o episódio a deixou muito triste e as amigas deram-lhe todo o apoio nesse transe. Acredito que Carmen, de início, estabeleceu com Cláudio uma relação romântica, associando seu nome ao da revista na qual trabalhava. Infelizmente foi mal correspondida e para uma feminista tão radical não havia outra solução senão o rompimento que ela provocou... Pagou caro, pois os gatos jamais apareceram...

- Carmem tinha grande talento para falar línguas estrangeiras. Seu passatempo preferido era fazer palavras cruzadas em espanhol, inglês ou italiano. Sua facilidade no trato de idiomas que não eram o seu lhe dava oportunidade de ter um círculo de amigos de variadas nacionalidades.

- Nossa escritora vivia em conflito permanente com a falta de audição, jamais se adaptou ao aparelho que usava contra a surdez. Mesmo com esta inadaptação, adorava teatro e um bom papo com amigos.

Conforme relata a amiga Moema, Carmem não se preocupava com a própria saúde. Vivia em função de dietas que alternava com períodos de rápido aumento de peso.  Em sua geladeira só havia água (para seu uísque habitual) e comida para o gato Momo (o último que Carmem adotou para suprir a falta dos “sequestrados”). As suas refeições eram feitas sempre na rua, sem nenhuma preocupação com a regularidade. Gostava de comer bem quando tinha companhia.

Para Moema, Carmen da Silva foi uma mulher única, em muitos sentidos. Viveu intensamente o dia-a-dia, sem preocupação com o futuro próximo ou mais remoto.  Entregava-se com a mesma alegria ao trabalho, aos amigos e às boas coisas da vida. Soube ser amiga e por isso mesmo teve grandes amizades que até hoje a lembram com muita saudade.

Moema Toscano, Rio de Janeiro, junho de 2008.

1Projeto CNPq/PIBIC, processo número 597553/2008, intitulado: Carmem da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo. Responsável: professora Nubia Hanciau. PPG-Letras FURG, 2008.