Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Depoimento de Alice Barreto del Fresno

(sobrinha de Carmen da Silva)

Estive pensando umas coisas que têm a ver com a vida de Carmen e com nossas experiências conjuntas durante tantos anos. Morei com ela até os 8 anos (1939). Após a morte de vovó, em 1940, Carmen tornou a morar conosco, até sua ida para Montevidéu. Aqui tenho uma dúvida: pelos meus cálculos isso aconteceu no inverno de 1943, embora tenha se estabelecido, ignoro por quê, que foi em1944. Depois de Montevidéu, quando já morávamos em Porto Alegre, Carmen trabalhou um tempo num curtume nos arredores de Porto Alegre e passava o fim de semana conosco. Papai foi transferido para o Uruguai em 1950, Carmen já estava em Buenos Aires, mas passava as férias, feriados longos, em casa; era só meia hora de viagem e pronto. Sem dúvida, sua verdadeira família éramos nós, prescindindo das outras duas irmãs. Certa vez, ao ser entrevistada, Carmen menciona os “netos”. Eram os meus filhos e sobrinhos. Aqui, lendo o texto de Danda Prado, apresentado no painel “O encontro com Carmen da Silva” e relendo o livro da Carmen Histórias híbridas de uma senhora de respeito, esclareço que quando Danda menciona “noivo fino, etc.” no seu texto Carmen estava retratando os dois cunhados, dois Carlos, marido de Celina um, e de Bebela, o outro. A meu ver, o ambiente familiar já era um antecedente do feminismo ou, pelo menos, da transgressão. Celina e mamãe, por exemplo, começaram a trabalhar antes dos 20 anos e por necessidade econômica, como bancárias, as primeiras mulheres em Rio Grande a terem esse tipo de emprego. O padrinho de Carmen, advogado formado em Coimbra, era político; foi deputado federal e instalava-se em casa quanto passava por Rio Grande. Era gente avançada, preparada, livre-pensadora, que não permitia que o catolicismo exacerbado de então impedisse qualquer forma de pensamento liberal.

Carmen viajou à Rússia mandada pela Claudia. Como morria de medo de avião, foi do Rio a São Paulo de trem. Lá, com meia garrafa de uísque, foi até Paris, onde consumiu o restante para juntar coragem e seguir até Moscou. Esteve ainda outra vez na Rússia com Cláudio e, certamente, consumiram duas garrafas no trajeto, e litros de vodca no destino.

Em fevereiro de 1958 foi lida na Rádio Nacional, que então gozava de muito prestígio, uma obra de teatro baseada em O Banquete de Platão, cujo nome esqueci. Reunimo-nos ao redor de um aparelho mínimo e com som execrável para escutar a leitura: Carmen, Jorge Weil, o psicanalista dela, meu marido e eu. Inútil. Entre o barulho da rua, a descarga do rádio e as perguntas inoportunas de Mme. Weil, que também estava presente, foi impossível decifrar o que estava sendo lido. Aliás, acho que ninguém escutou. A TV tinha aparecido um pouco antes e uma obra de teatro lida era coisa do passado. Carmen também tentou estrear na TV, no Brasil, sem sucesso. Era uma novela, acho que levada ao ar na Record, que ficou nos primeiros capítulos, porque ela não aceitou certas intromissões do produtor ou patrocinador.

Nota: Mamãe e Carmenzinha, embora aparentemente diferentes, eram persona e personagem; casca diferente, mesmas idéias no que concerne a independência, mulheridade, culinária, agarrar os talheres, etc. Por essas razões, e por morarmos sempre juntas ou muito perto, a convivência entre as duas foi bem mais intensa do que com as outras irmãs.