Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Tradução traz detalhes sobre conto polêmico de Carmen da Silva publicado na Argentina
26 de outubro de 2023
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Tradução traz detalhes sobre conto polêmico de Carmen da Silva publicado na Argentina

Uma nova tradução do Doutor em Letras/História da Literatura (FURG) e Professor de Filosofia (Consejería de Educación de Cantabria/España), Jesús Pérez García, amplia para a comunidade lusófona o contexto, os encaminhamentos e os argumentos de Carmen da Silva em relação à polêmica sobre o seu conto La niña, el capullo y el Retrato, publicado na revista Damas y Damitas, de janeiro de 1961.

A tradução de uma matéria da revista Usted, de 13 de fevereiro de 1961, foi preparada exclusivamente pelo assíduo colaborador do site sobre a escritora, coordenado pela Profa. Dra. Nubia Hanciau. O recorte original está disponível, na sua versão digital, na aba “Recortes jornalísticos”, “Caderno 1”, “item nº 30”. García possui um artigo sobre o tema, intitulado “A menina, o broto e a foto”: crônica de um conto sequestrado, publicado na obra Para ler Carmen da Silva: precursora do feminismo brasileiro (Nubia Hanciau/Francisco das Neves Alves, Orgs). O pesquisador espanhol também é o responsável pela tradução, em curso, para a língua espanhola da obra Histórias híbridas de uma senhora de respeito, autobiografia da precursora do feminismo brasileiro, publicada um ano antes da sua morte.

Confira, a seguir, a tradução na íntegra:

 

CARMEN DA SILVA:

Caderno 1 / Recorte 30 / 13 de fevereiro de 1961 - Usted

 

Escrevo para que haja crianças

  • Tradução Jesús García

Carmen da Silva, solteira, 35 anos confessos, nascida no estado do Rio Grande do Sul, escritora, reside em Buenos Aires há vários anos, desde a última semana é a vítima mais jovem do riestrismo[1] argentino. Seu conto, La niña, el capullo y el retrato, publicado na revista feminina Damas & Damitas de 25 de janeiro, provocou a reação tardia de cinco aspirantes à vaga do fiscal De la Riestra, concentrados em honorária comissão de Moralidade Assessora do intendente. Aconselhado por Francisco Mario Fassano, Gustavo de Gainza, Félix Lafiandra, Enrique Lavié e Julio Rodofili, o prefeito Giralt e dois dos seus secretários assinaram na terça-feira 7, decreto Nº 196, ordenando o sequestro de todos os exemplares em circulação. Entretanto, Carlos Del Peral Peralta, diretor da renovada D&D, disse a Usted que os inquisidores só lograram apoderar-se de 13 exemplares: a notificação judicial foi tornada pública um dia depois do aparecimento do número posterior, quando os distribuidores – como é comum – já tinham retirado todos os exemplares atrasados de todas as bancas de jornais. Peralta disse que, contudo, nesta quinzena não haverá devoluções, já que o diktat provocou vendas inusitadas, considerando os numerosos pedidos de aumento de cota por parte de entusiasmados vendedores de jornais, encomendados por clientes apaixonadas.

Na oficina da secretaria administrativa da honorária comissão, Usted foi recebido por alarmada funcionária que declamou angustiante poema moralizador: Ninguém que tenha filhas pode deixar entrar na sua casa relatos dessa espécie, afirmou a secretaria em colérico gesto final. A chegada de mais servidores recatados permitiu a Usted informar-se de que a comissão de referência foi constituída por decreto municipal Nº 291 desse ano e que seu funcionamento estava regulado pelo anterior decreto normalizador (Nº 115/58 publicado no Boletim Municipal Nº 10.772) que expõe três critérios básicos para regular a censura: imoral, imoral com caraterísticas de obsceno e uma terceira categoria reservada para aquelas publicações científicas ou artísticas das quais é permitida venda livre apenas em locais fechados.

Por sua vez, Carmen da Silva disse a Usted que não pensa recorrer à SADE[2] procurando proteção porque espera pronunciamento espontâneo da instituição. No entanto, ameaçou com jovial artigo ainda sem destino determinado, onde há referência ao argentiníssimo prurido da moralidade nos seguintes termos:

Acho inexplicável o fato de os argentinos terem um pudor médio mais elevado do que em certos países europeus, como a Suíça, por exemplo, onde não se registram negociatas, imoralidade administrativa, nem golpes de estado. O pudor argentino canaliza-se para um único setor: não utilizar na literatura e no periodismo nenhuma das palavras das quais se abusa na linguagem comum, colocando especial cuidado em evitar alusões anatômicas e insinuações de alcova. Este tipo de pudor me faz lembrar aquele que praticam as velhas beatas que batem com vivacidade e frequência e insultam suas serventes, mas cuidam a literatura que entra na sua casa. A única literatura imoral é a que, como literatura, está mal resolvida. A culpa é dos próprios escritores argentinos que são incapazes de reagir. Eu mesma já assisti a reuniões da SADE sobre censura e comprovei que a maioria dos escritores eram partidários de algum tipo de censura. E se isso não bastasse, cada um dos escritores tem sua própria censura interna, seu próprio freio.

Por fim, a escritora disse que concluiria seu artigo com risonha consideração: Eu diria que a única moralidade[3] no adulto é a que vem do conhecimento do bem e do mal: não da sua ignorância. Mas se os adultos se privam de tudo que não é apto para crianças, vai chegar um momento em que não haverá mais criança. Carmen da Silva disse a Usted que acha seu conto A menina, o broto e a foto um dos relatos seus mais ingênuos, nele tenta descrever um certo tipo de adolescente da classe meia endinheirada que é especialmente imaginativa, ainda que precise tempo para animar-se a passar à prática.

Em seu único romance publicado em Buenos Aires (Setiembre, Editora Goyanarte), Carmen relata os inquietos dias vividos por dois grupos sociais portenhos em torno dos dias da Revolução Libertadora: um grupo de personagens mora no Alvear Palace, e o outro em uma sórdida pensão dos arrabaldes. Apenas as concentrações populares estabelecem pontos de contato entre ambos.

Carmen disse ainda a Usted que, dos argentinos, prefere os provincianos, porque eles são mais espontâneos. Em troca, acha os portenhos agressivos e perseguidores, ainda que lhe pareça que isso oculta uma evidente falta de segurança em relação à sua virilidade: Toda a atitude do portenho é de compensação: ele só procura mostrar às mulheres do que ele é capaz. Carmen disse que é vocacionalmente solteira, que sua vida social inicia ao redor das duas da manhã: Em casa, com amigos escritores e jornalistas fazemos uma espécie de dolce vita pobre, com a diferença de que todos nós sabemos o que queremos do mundo e para onde vamos. Também disse a Usted que toma muito álcool, fuma sem parar e anda à disparada.


*Jesús García. Doutor em Letras / História da Literatura (FURG). Professor de Filosofia (Consejería de Educación de Cantabria / España).

[1] O termo riestrismo faz referência ao fiscal Guillermo De la Riestra e a sua luta pela moralidade na Argentina. O fiscal De la Riestra ficou tristemente famoso pela ação contra romances, filmes, contos, jornais e revistas, principalmente no período entre o golpe contra Juan Domingo Perón, em 1955, e o golpe militar de 1966. O jornalista usa o termo riestrismo para referir-se a essa corrente moralista argentina. Não foi De la Riestra o impulsor do sequestro do número de Damas & Damitas em que aparece La niña, el capullo y el retrato, mas sim fiscais que seguiam a corrente moralista que ele impulsionou.

[2] Sociedade Argentina De Escritores.

[3] No texto original aparece a palavra ‘inmoralidad’, mas no recorte de Carmen da Silva a primeira sílaba, ‘in’, parece estar borrada com caneta, como se a palavra ‘inmoralidad’ fosse um erro de transcrição da entrevista. Certamente, a frase parece ter um sentido mais em acordo com o conteúdo interpretando que o que ela quis dizer foi que a moralidade vem do conhecimento. É o conhecimento e a possibilidade de escolha que produz a moralidade ou a imoralidade. A inconsciência (ou a ignorância) só poderia levar a um estado de amoralidade tal como é predicado em relação aos animais.