Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Duas crônicas sobre Carmen, por José Antonio Altmayer
15 de agosto de 2022
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Duas crônicas sobre Carmen, por José Antonio Altmayer

Em alusão ao centenário de nascimento de Carmen da Silva, comemorado em 2019, e, mais recentemente, a realização de um concurso literário sobre a escritora com o destaque para o gênero crônica, nosso site abriu espaço para a publicação de dois textos inéditos sobre a precursora do feminismo brasileiro, escritos por José Antonio Altmayer.

José Antonio Altmayer é rio-grandino, professor e médico oftalmologista. Faz parte do coletivo literário “Escritores de Quinta” e, dentre outras publicações, integrou os livros Histórias de vento, mar e amor e Ventania, organizados pelas escritoras Joselma Noal e Alison Guedes Altmayer, respectivamente.

Leia, a seguir, os textos na íntegra:

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Cruzando a praça Tamandaré

por José Antonio Altmayer

    Já cruzei essa praça no século 20 e no século 21; nem todos tiveram o privilégio de viver em dois séculos, mas isso aqui é de somenos importância. Cruzei de dia e de noite, a pé e de bicicleta, parei nos macacos e nos marrecos, vi tucanos e lindas araras e até porquinho-da-índia. Andei só e andei acompanhado, muitas vezes bem, algumas outras nem tanto. Mas cruzei.

    Aliás cruzo ainda até hoje e me renovo. Mas isso também não vem ao caso nessa nossa conversa. Esqueci de mencionar que via de regra cruzei sóbrio e com passos firmes, reto pelas alamedas sem álamos, mas com lindos taquarais e com “manacás floridos perfumando a passagem” como descreveu a Carmen da Silva.

    O que me traz até aqui, hoje, é a lembrança de uma dessas cruzadas, quando justamente no largo do coreto, hoje levando o nome da supracitada, me deparei com uma reunião insólita. Era de noite, já não recordo a hora e o dia muito menos, e não me perguntem quantas foram as cervejas no Bauru do Atílio. Sanduiche foi um só. Pois ali estava, sentado numa cadeira de bronze esverdeada pelo zinabre, o Bento. Sim, ele mesmo, o Gonçalves da Silva. 

    Sobre uma pilha de jornais, engraxando as botas do general, o moleque do Gobbi, aquele que homenageia a imprensa. Suponho que fosse um bico do jornaleiro, não uma subserviência da imprensa ao poder, mas sabe-se lá o que passa na cabeça de estátuas redivivas. Os leões ressonavam um pouco adiante, de bucho cheio. Os marrecos tinham sumido, mas não quero aqui levantar suspeitas sobre os felinos.

    Continuei me aproximando, seguindo como numa carta antiga, poucas e mal traçadas linhas, e ouvi a discussão, nada diplomática, entre o Bento e um senhor corpulento e careca, vestindo casaca. Parecia que esse sacudia a cadeira onde sentara o general, e dizia: “é minha, é minha”. 

    Pois, meus amigos, pasmem, o Barão tinha perdido a linha. Reclamava, com razão, a cadeira que lhe fora roubada lá na Praça 7 de Setembro, mas seu comportamento era nada diplomático. Provável fruto do cansaço de há tanto tempo não ter onde sentar.

    Percebi Bento levar a mão à espada e olhar para o Barão do Rio Branco com rancor e determinação. Quem evitou o confronto foi outra obra do Gobbi. Ele caminhou sobre as águas do lago da praça e, tocando os dois contendores, disse: “a paz esteja convosco”. De imediato o General guardou a espada e o Barão parou de sacudir a cadeira. Jesus voltou para sua posição, andando de costas para não ver a Vênus, seminua, se banhando.

    Enquanto isso, na ponte, debruçada sobre a amurada, Carmen discutia seu romance Sangue sem dono com a ninfa desnuda, indiferentes ao burburinho gerado por Bento e Rio Branco. Quanto ao Napoleão Bonaparte não saiu de sua ilha para intervir. Desde que ocupou a região dos marrecos aposentou as armas. Observou de longe coçando o peito. Das minhas passadas pela praça, essa foi sem dúvida a mais estranha de todas. Acho que o bauru do Atílio não me tinha caído bem.

Nota: todas as esculturas mencionadas estão na Praça Tamandaré, com exceção da de Rio Branco que está na Praça 7 de setembro, sem a cadeira que lhe foi roubada. Carmen ainda não ganhou sua estátua, mas foi lembrada com carinho. Érico Gobbi foi um excelente escultor cá da terrinha.

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Carmen, a da Silva

por José Antonio Altmayer

    Carmen sentava-se à janela que dá vista para o Cristo Redentor. De certa forma, naquela zona do Rio todas as janelas tinham esse privilégio. Imersa em seus escritos não percebia a chegada da noite, com suas luzes e mosquitos. A brisa trazia um ar mais fresco e as emanações da Lagoa. Os ruídos da cidade grande diminuíam na medida do avanço das trevas. Insone, seguia escrevendo. Fumava um cigarro atrás do outro.

    Muito cedo sua coluna tinha de estar na Editora Abril. Para a revista Claudia escrevia sobre “A arte de ser mulher”. Ali expunha suas ideias, liberais para época, que a faziam amada pelas mulheres e odiada pela maioria dos homens. Minha esposa comprava a revista e, quase sempre, eu lia a coluna antes dela. Também gostava da secção culinária, mas as opiniões de Carmen me marcavam.

    Eu admirava seu estilo e suas ideias embora meu lado machista não permitisse externar esse sentimento. Hoje, é a primeira vez que falo sobre isso. Mas sem dúvida Carmen estava muito além do seu tempo e foi muito lúcida em suas colocações. Pioneira do feminismo, conquistou um lugar no coração das mulheres, fazendo que tivessem voz e se organizassem. Fez também que homens se interessassem pelo assunto. “A discussão sobre a mulher ampliou-se; hoje ela interessa também aos homens, aos inteligentes, é claro”, disse ela em determinada altura de sua vida.

    Escreveu sete livros, manteve publicação mensal na revista Claudia e percorria o Brasil reunindo grandes plateias femininas em palestras. Psicanalista, escritora e jornalista de altíssimo nível orientava uma multidão. E era conterrânea, nascida aqui no Rio Grande. Estudou no Santa Joana D’Arc, trabalhou na Refinaria Ipiranga, depois viveu em Montevidéu e Buenos Aires, onde fez análise e publicou o livro Setiembre. Mudou-se, mais tarde para Niterói e posteriormente para o Rio de Janeiro.

    Mas eu não sabia disso, assim como acredito que muita gente não soubesse. Foi preciso que uma amiga querida, vinda da Boca do Monte, trouxesse luz para esse assunto, por meio de estudos sobre a vida e obra de Carmen da Silva.

    Lembram de minha crônica anterior, onde falei num coreto existente na praça Tamandaré? Pois hoje, o local onde está localizado, se chama “Largo Carmen da Silva, a grande dama do feminismo brasileiro”, justa homenagem a essa conterrânea tão destacada e tão pouco conhecida em sua terra natal.

   Obrigado Prof. Dra. Nubia Hanciau, que com sua equipe universitária movimentou as memórias e destacou a figura ímpar de Carmen da Silva.